domingo, fevereiro 19, 2006

Querida mãe

Querida mãe,

Passaram já três semanas desde que abandonei o Coiro da Burra para vir estudar para Lisboa. Estou a aprender a cada dia que passa. Aquilo que lhe escrevi na última carta sobre as pessoas serem malcriadas? Não faça caso! A vida aqui passa tão depressa que as pessoas aproveitam cada segundo que têm da forma mais poupadinha possível. Para lhe dar um exemplo, eu já me habituei a ir à venda cá da rua, chegar ao pé do senhor e perguntar: tem a Algarve Mais? E não lhe dou os bons dias nem nada porque é falta de educação dizer isso a meio do dia. Só que ainda não cheguei ao nível do senhor que atende, porque ele, que já deve ter uns bons trinta anos daquilo em cima já só me responde com um grunhido e sem um sorriso. É que eu ainda faço um sorriso, mas ao menos já deixei de mostrar os dentes! E como ele me conhece nem precisa de me falar para me pedir o dinheiro que é!

Mas mãe, eu tenho de lhe contar que estou a aprender muito na maneira de dar os passoubens! Eu antes parava para falar aos meus colegas se os encontrava na rua, mas isto mesmo ao fim de semana a vida não pára! Eles mexiam-se muito, práqui e práli quando eu ficava a conversar com eles, com muita vergonha de me dizer que não podiam ficar na conversa porque a vida estava difícil e eles tinham de trabalhar. E quando me dei conta que nem ao fim de semana a vida parava em Lisboa comecei a treinar, a treinar... E agora já consigo cumprimentar a pessoa em andamento sem parar! No outro dia encontrei aquele meu amigalhaço, o Diogo: aquele que meteu conversa comigo no primeiro dia de aulas, lembra-se de eu lhe ter falado disso? Pois bem, ele tem-me ensinado muito. Calcule, mãe, que não voltou a falar comigo desde esse dia! Ele ensinou-me que a vida corre tão depressa que mesmo nos intervalos das aulas não há tempo para ficar no paleio! Olhe, já as minhas colegas não aprendem assim tão depressa, porque ele fica sempre a falar uma porrada de tempo com elas e se eu o conheço bem deve ficar a explicar-lhes que não há tempo para andar ali de rabo no ar sem fazerem nada. E ele finge tão bem que põe aquela cara de satisfação, que é parecida à do pai quando está de posse da chouriça. Mas ele não é assim, porque quando estamos os dois está sempre muito triste e com aquela cara que a mecê faz quando vamos ver a mãe do pai!... eu cá acho que ele deve ser muito sozinho. Mas não era nada disto que eu queria contar! Estava a dizer-lhe que no outro dia estava a entrar na Faculdade e nos encontrámos no corredor: consegui apertar-lhe a mão sem parar de andar! Fiquei muito contente!

Mas é claro que isto tem regras! Com os vizinhos já não é assim. Os vizinhos só se cumprimentam dentro do prédio ao fim do dia, que é quando se pode descansar. Porque lá fora, a maneira correcta de se cumprimentar é ir olhando para o vizinho quando o vemos na rua até termos a certeza que ele nos viu. E depois olhamos para outro lado e já podemos seguir a nossa vida. Alguns colegas também fazem isso. Eu acho que só cumprimentamos com a mão aqueles com quem temos uma relação mais próxima, sabe? Estas coisas aprendi muito a custo porque ninguém nos ensina nada disto. Um professor meu é que foi muito simpático. Ele perguntou-me no corredor como é que estava tudo e calhou naquela altura em que a prima Gertrudes estava com as hemorróidas. E eu estava preocupado com a prima e comecei a falar disso ao professor, até que ele me disse que estava com um dia muito díficil e que a conversa tinha de ficar para outra altura. E quando no fim das aulas eu chegava ao pé dele e ele me dizia logo que estava muito ocupado eu percebi como a vida estava dura mesmo para os professores e que se tinha de trabalhar muito. Mas fiquei muito contente porque mesmo com a vida tão díficil ele ainda teve tempo para me perguntar se eu estava bem. Ele é muito severo nas aulas, mas para mim ele tem o coração mole.

Bem, esta carta já vai longa e ainda ainda não acabei de lavar a louça dos meus companheiros de apartamento e depois ainda tenho de lhes passar a roupa. Eu descobri que eles trabalham de noite para poderem pagar os estudos. Nunca lhes perguntei que tipo de trabalho fazem porque chegam tão cansados e enjoados que acabam sempre por vomitar na retrete. Deve ser um trabalho muito duro e eu fico-vos grato, pai e mãe, por me poderem pagar os estudos para eu não ter de passar por esses sofrimentos. Entretanto, faço o que posso pelos meus companheiros que são como se fossem uma nova família num novo lar.

Muitas saudades do filhinho,

ML

2 comentários:

Buskyta disse...

Quero dar-te os passoubens!!! Muito bom mesmo! lololololol
Valeu a pena esperar pelo post e a trabalheira de fazer o scroll down hihihihi :P

Anónimo disse...

5 estrelas! (faz-me lembrar quando xegui à capital. Moç provinciano de boas familias e de bom preceito! também lavi muita louça...lavi pos!
Já agora quem são aquelas moçoilas que andam de volta do técnico? é que sã tão bem parecidas, que metem sempre conversa quando lá paso.)
Um bem haja!